Esta matéria foi escrita em 2002 para um jornal independente, chamado “Ucarana”. Perdi o único exemplar do jornal, que tinha um dos poucos registros fotográficos do show do Raul em Ponta Grossa.
Para minha sorte, nesta semana acabei trombando com meu texto no site de um fã-clube do cantor. E aí está ele:
No mesmo ano em que o maestro Heitor Villa-Lobos fundava a Academia Brasileira de Música, 1945, nascia em 28 de junho, em Salvador, Raul dos Santos Seixas – o pai do rock brasileiro.
Apesar de pertencer à mesma geração de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e outros artistas que definiram o movimento Tropicalista, Raul Seixas se deixou levar pelo rock ‘n’ roll apresentado pelos seus vizinhos do consulado americano.
Em 1962, Raul montou sua primeira banda, Os Relâmpagos Do Rock, que passou a se chamar Raulzito e os Panteras no auge do movimento bossa-nova. Apoiados no sucesso da Jovem Guarda, em 1968 o cantor e sua banda sairam em turnê pelo Brasil abrindo os shows de Jerri Adriani e gravaram seu primeiro LP, Raulzito e os Panteras, que não chegou a fazer grande sucesso. Destaque para “Você Ainda Pode Sonhar”, versão em português de “Lucy in the Sky With Diamonds” dos Beatles. Participou em 1972 do Festival Internacional da Canção, promovido pela Rede Globo, e teve duas músicas classificadas, “Let Me See Let Me See” e “Eu Sou Eu Nieuri É O Diabo”, atingindo a tão desejada repercussão nacional ao assinar contrato com a Philips Phonogram. No ano seguinte, conheceu o escritor Paulo Coelho e começaram a compor juntos e idealizar a Sociedade Alternativa, comunidade anarquista que se baseava na doutrina do mago inglês Aleister Crowley. A ditadura militar considerou o movimento subversivo e
os exilou nos Estados Unidos, onde conheceram figuras importantes do rock como John Lennon e Elvis Presley.
Dois anos depois, Seixas voltou ao Brasil em meio ao sucesso do LP Gita e produziu uma série de álbuns de sucesso: Novo Aeon (1975), Há Dez Mil Anos Atrás (1976), Raul Rock Seixas (1977), O Dia Em Que A Terra Parou (1977), Raul Seixas (1983) e Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum! (1987).
Em 1988 passou a compor e a fazer shows com o também baiano Marcelo Nova, da banda Camisa de Vênus. Depois de quatro anos sem pisar nos palcos, Raulzito lançou seu novo em trabalho Salvador e seguiu com a turnê pelo Brasil. O Maluco Beleza já não era mais o mesmo. Em maio do ano seguinte fez show em Londrina e mal conseguiu se manter em pé no palco, balbuciando seus grandes sucessos. Sylvio Passos, presidente do Fã Clube Oficial do Raul Seixas em São Paulo, lembra que na época, mesmo abalado pelos males do alcoolismo, o cantor não deixava de incorporar o seu “raulseixismo” e encantar o público. “Os fãs sabiam que Raul se aproximava do fim, assistiam aos shows que duravam, às vezes, apenas quinze minutos para ver seu ídolo pela última vez”, disse Sylvio, também autor de “Raul Seixas Por Ele Mesmo” e “Raul Seixas, Uma Antologia” lançados pela Martin Claret.
Ponta Grossa transpirava rock ‘n’ roll , embalada com o sucesso do primeiro Rock In Rio, que trouxe ao país celebridades como Ozzy Osbourne, Queen e Scorpions. Muitos clubes da cidade promoviam festas de rock de sexta a domingo, até mesmo os Ratos de Porão chegaram a fazer um show “matinê” na Praça Barão de Guaraúna às 6h da tarde (Programa Sexta às Seis).
Seixas acabava de passar por Londrina no dia 11 de maio com a turnê do discp “Panela do Diabo” e a próxima cidade para receber o ídolo foi Ponta Grossa, mais precisamente o ginásio de esportes Oscar Pereira. Era a primeira e a última chance que os ponta-grossenses tinham para ver ao vivo o “Maluco Beleza”.
Como Raulzito não havia feito show em Curitiba, Ponta Grossa foi invadida pelos roqueiros da capital no dia 14 de maio. A apresentação foi marcada para as 20h, mas desde o início da tarde as pessoas tumultuavam a Balduíno Taques. “Acho que nunca os botecos de Ponta Grossa viram tanta gente, desde as duas da tarde estavam tomados”, conta Sebastião Natalio, que viu o show meio que por acaso.
Sobre a estada do “pai do rock brasileiro” na cidade existem várias lendas. Uma delas diz que o ídolo saiu a pé do hotel onde estava hospedado para o local do show com duas garrafas de uísque que comprou em um bar na Coronel Dulcídio, tudo isso sem ser percebido pelos fãs. “Acho isso impossível, o Raul estava tão bêbado que nem conseguia dar entrevista no saguão do hotel”, lembra Alceu Bortolanza. proprietário do “Arco da Velha”. Alceu acabou não assistindo ao show por causa da fila imensa de fãs na Balduíno Taques, se arrepende até hoje, mas mesmo assim possui uma relíquia do evento na sua coleção de discos. “Fiquei em casa naquele dia e descobri que uma rádio da cidade iria transmitir o show ao vivo. Acho que sou o único que ainda possui esta transmissão gravada”.
Com algumas horas de atraso, Marcelo Nova apareceu no palco com a banda Invergadura Moral e tocou sucessos do Camisa de Vênus e da Panela do Diabo. Raul subiu ao palco completamente travado pela bebida e resmungou “Sociedade Alternativa” e em seguida “Maluco Beleza”, o público delirou e nem se importou com o estado do ídolo. Sebastião Natalio conta que Raul carregava uma garrafa de uísque e mal conseguia ficar em pé no palco, cantando terrivelmente desafinado. “Tolerância é uma das marcas do estilo. Se você estivesse no show, mas observando a pessoa e não o que ele tentava cantar, fatalmente chegaria a conclusão de que o tempo de vida dele era curto”, diz Sebastião.
Marcelo Nova lembrou os anos 60 com a platéia, quando ele era “um garotinho e Raul um rapazinho, de pimpão e as porra toda” e cantou com o ídolo uma das músicas do Raulzito e os Panteras. Em seguida, Raul dedicou “Rock das Aranhas” para Maria Betânia, Gal Costa, Angela Roro, Zizi Possi e “toda a turma do gênero”. O público foi à loucura e o Oscar Pereira tremeu. Para acalmar a galera desafinada, “Metamorfose Ambulante”, com direito a isqueiro aceso e tudo mais, no meio da música, para lá de bêbado, Raul começou a criticar o governo da época. “Falo do José Sarney hoje em dia, que aperta o nosso pé a cada dia e a gente não tem opção nenhuma. A gente continua calçando um número a menos, isso causa calo e calo dói. Ê chato pra burro”. Sem muita cerimônia, o “pai do rock” deixou o palco como quem odeia despedidas.
Dois meses depois, no dia 21 de agosto, Raul foi encontrado morto no seu apartamento em São Paulo, rendido ao vício e à sua própria e íncontrolável maluquez. Ponta Grossa ficou na história como uma das últimas cidades que recebeu o cantor, nos tempos em que o rock era muito mais do que moda, era atitude.
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